17 de ago. de 2017

Consentimento livre e esclarecido.

Há tantas coisas possíveis de serem realizadas, mas convém fazer tudo o que é possível fazer? Há aqueles que consideram a Igreja e outras instâncias de debate ético como entrave para as pesquisas. Bem, onde faltam o bom senso, a centralidade da pessoa em sua dignidade, onde as mentes e suas ações são dirigidas por alguma ideologia selvagem que desconsidera a essência da dignidade da pessoa, ali, sim, podemos falar de questionamentos ‘indesejáveis’, pois levantar questões éticas visa dar mais consistência e sentido ético às pesquisas científicas e, de forma nenhuma, impedir que elas possam beneficiar a humanidade.

O que ensina a Igreja Católica?

Sobre o sentido positivo das pesquisas:
“As experiências científicas, médicas ou psicológicas em pessoas ou grupos humanos podem concorrer para a cura dos doentes e para o progresso da saúde pública.” (Catecismo da Igreja Católica, 1992, n. 1192)

Sobre os limites sobre das pesquisas:
“A ciência e a técnica são recursos preciosos postos a serviço do homem e promovem seu desenvolvimento integral e benefício de todos; contudo, não podem indicar sozinhas o sentido da existência e do progresso humano. A ciência e a técnica estão ordenadas para o homem, do qual provêm sua origem e seu crescimento; portanto, encontram na pessoa e em seus valores morais a indicação de sua finalidade e a consciência de seus limites.” (Catecismo da Igreja Católica, 1992, n. 2293).

Sobre o respeito e o bem integral da pessoa:
“É ilusório reivindicar a neutralidade moral da pesquisa científica e de suas aplicações. Além disso, os critérios de orientação não podem ser deduzidos nem da simples eficácia técnica nem da utilidade que possa derivar daí para uns em detrimento dos outros, e muito menos das ideologias dominantes. A ciência e a técnica exigem, por seu próprio significado intrínseco, o respeito incondicional dos critérios fundamentais da moralidade; devem estar a serviço da pessoa humana, de seus direitos inalienáveis, de seu bem verdadeiro e integral, de acordo com o projeto e a vontade de Deus.” (Catecismo da Igreja Católica, 1992, n. 2294)

Sobre o consentimento livre e consciente do participante da pesquisa:
“As pesquisas ou experiências no ser humano não podem legitimar atos em si mesmos contrários à dignidade das pessoas e à lei moral. O consentimento eventual dos sujeitos não justifica tais atos. A experiência em seres humanos não é moralmente legítima se fizer a vida ou a integridade física e psíquica do sujeito correrem riscos desproporcionais ou evitáveis. A experiência em seres humanos não atende aos requisitos da dignidade da pessoa se ocorrer sem o consentimento explícito do sujeito ou de seus representantes legais.” (Catecismo da Igreja Católica, 1992, n. 2295)
Uma das grandes dificuldades na área da saúde é pesquisa é a comunicação. É dela que dependem as relações humanizadas e a lisura dos processos.  Para todas as questões críticas, a Igreja ressalta a exigência fundamental do consentimento explícito, livre e esclarecido. Nisso, graças a Deus, a Igreja não está sozinha.  O primeiro documento relevante que estabeleceu o critério do consentimento foi o Código de Nürnberg e depois foi assegurado em outros códigos locais. Vale lembrar aqui como foi estabelecido nas leis brasileiras.

Segundo as normas vigentes no Brasil, entende-se o consentimento como exigência fundamental do respeito à dignidade da pessoa. A resolução 466/12 (IV), do Conselho Nacional da Saúde (CNS), garante o consentimento em todas as etapas da pesquisa. O participante tem o direito garantido de exercer sua autonomia:
“IV - DO PROCESSO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe com consentimento livre e esclarecido dos participantes, indivíduos ou grupos que, por si e/ou por seus representantes legais, manifestem a sua anuência à participação na pesquisa.
Entende-se por Processo de Consentimento Livre e Esclarecido todas as etapas a serem necessariamente observadas para que o convidado a participar de uma pesquisa possa se manifestar, de forma autônoma, consciente, livre e esclarecida.
IV.1 - A etapa inicial do Processo de Consentimento Livre e Esclarecido é a do esclarecimento ao convidado a participar da pesquisa, ocasião em que o pesquisador, ou pessoa por ele delegada e sob sua responsabilidade, deverá:
a) buscar o momento, condição e local mais adequados para que o esclarecimento seja efetuado, considerando, para isso, as peculiaridades do convidado a participar da pesquisa e sua privacidade;
b) prestar informações em linguagem clara e acessível, utilizando- se das estratégias mais apropriadas à cultura, faixa etária, condição socioeconômica e autonomia dos convidados a participar da pesquisa; e
c) conceder o tempo adequado para que o convidado a participar da pesquisa possa refletir, consultando, se necessário, seus familiares ou outras pessoas que possam ajudá-los na tomada de decisão livre e esclarecida.
IV.2 - Superada a etapa inicial de esclarecimento, o pesquisador responsável, ou pessoa por ele delegada, deverá apresentar, ao convidado para participar da pesquisa, ou a seu representante legal, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para que seja lido e compreendido, antes da concessão do seu consentimento livre e esclarecido.
IV.3 - O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá conter, obrigatoriamente:
a) justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa, com o detalhamento dos métodos a serem utilizados, informando a possibilidade de inclusão em grupo controle ou experimental, quando aplicável;
b) explicitação dos possíveis desconfortos e riscos decorrentes da participação na pesquisa, além dos benefícios esperados dessa participação e apresentação das providências e cautelas a serem empregadas para evitar e/ou reduzir efeitos e condições adversas que possam causar dano, considerando características e contexto do participante da pesquisa;
c) esclarecimento sobre a forma de acompanhamento e assistência a que terão direito os participantes da pesquisa, inclusive considerando benefícios e acompanhamentos posteriores ao encerramento e/ ou a interrupção da pesquisa;
d) garantia de plena liberdade ao participante da pesquisa, de recusar-se a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma;
e) garantia de manutenção do sigilo e da privacidade dos participantes da pesquisa durante todas as fases da pesquisa;
f) garantia de que o participante da pesquisa receberá uma via do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido;
g) explicitação da garantia de ressarcimento e como serão cobertas as despesas tidas pelos participantes da pesquisa e dela decorrentes; e
h) explicitação da garantia de indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa.
IV.4 - O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido nas pesquisas que utilizam metodologias experimentais na área biomédica, envolvendo seres humanos, além do previsto no item IV.3 supra, deve observar, obrigatoriamente, o seguinte:
a) explicitar, quando pertinente, os métodos terapêuticos alternativos existentes;
b) esclarecer, quando pertinente, sobre a possibilidade de inclusão do participante em grupo controle ou placebo, explicitando, claramente, o significado dessa possibilidade; e
c) não exigir do participante da pesquisa, sob qualquer argumento, renúncia ao direito à indenização por dano. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido não deve conter ressalva que afaste essa responsabilidade ou que implique ao participante da pesquisa abrir mão de seus direitos, incluindo o direito de procurar obter indenização por danos eventuais.
IV.5 - O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá, ainda:
a) conter declaração do pesquisador responsável que expresse o cumprimento das exigências contidas nos itens IV. 3 e IV.4, este último se pertinente;
b) ser adaptado, pelo pesquisador responsável, nas pesquisas com cooperação estrangeira concebidas em âmbito internacional, às normas éticas e à cultura local, sempre com linguagem clara e acessível a todos e, em especial, aos participantes da pesquisa, tomando o especial cuidado para que seja de fácil leitura e compreensão;
c) ser aprovado pelo CEP perante o qual o projeto foi apresentado e pela CONEP, quando pertinente; e
d) ser elaborado em duas vias, rubricadas em todas as suas páginas e assinadas, ao seu término, pelo convidado a participar da pesquisa, ou por seu representante legal, assim como pelo pesquisador responsável, ou pela (s) pessoa (s) por ele delegada (s), devendo as páginas de assinaturas estar na mesma folha. Em ambas as vias deverão constar o endereço e contato telefônico ou outro, dos responsáveis pela pesquisa e do CEP local e da CONEP, quando pertinente.
IV.6 - Nos casos de restrição da liberdade ou do esclarecimento necessários para o adequado consentimento, deve-se, também, observar:
a) em pesquisas cujos convidados sejam crianças, adolescentes, pessoas com transtorno ou doença mental ou em situação de substancial diminuição em sua capacidade de decisão, deverá haver justificativa clara de sua escolha, especificada no protocolo e aprovada pelo CEP, e pela CONEP, quando pertinente. Nestes casos deverão ser cumpridas as etapas do esclarecimento e do consentimento livre e esclarecido, por meio dos representantes legais dos convidados a participar da pesquisa, preservado o direito de informação destes, no limite de sua capacidade;
b) a liberdade do consentimento deverá ser particularmente garantida para aqueles participantes de pesquisa que, embora plenamente capazes, estejam expostos a condicionamentos específicos, ou à influência de autoridade, caracterizando situações passíveis de limitação da autonomia, como estudantes, militares, empregados, presidiários e internos em centros de readaptação, em casas-abrigo, asilos, associações religiosas e semelhantes, assegurando-lhes inteira liberdade de participar, ou não, da pesquisa, sem quaisquer represálias;
c) as pesquisas em pessoas com o diagnóstico de morte encefálica deverão atender aos seguintes requisitos:
c.1) documento comprobatório da morte encefálica;
c.2) consentimento explícito, diretiva antecipada da vontade da pessoa, ou consentimento dos familiares e/ou do representante legal;
c.3) respeito à dignidade do ser humano;
c.4) inexistência de ônus econômico-financeiro adicional à família;
c.5) inexistência de prejuízo para outros pacientes aguardando internação ou tratamento; e
c.6) possibilidade de obter conhecimento científico relevante, ou novo, que não possa ser obtido de outra maneira;
d) que haja um canal de comunicação oficial do governo, que esclareça as dúvidas de forma acessível aos envolvidos nos projetos de pesquisa, igualmente, para os casos de diagnóstico com morte encefálica; e
e) em comunidades cuja cultura grupal reconheça a autoridade do líder ou do coletivo sobre o indivíduo, a obtenção da autorização para a pesquisa deve respeitar tal particularidade, sem prejuízo do consentimento individual, quando possível e desejável.
Quando a legislação brasileira dispuser sobre competência de órgãos governamentais, a exemplo da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, no caso de comunidades indígenas, na tutela de tais comunidades, tais instâncias devem autorizar a pesquisa antecipadamente.
IV.7 - Na pesquisa que dependa de restrição de informações aos seus participantes, tal fato deverá ser devidamente explicitado e justificado pelo pesquisador responsável ao Sistema CEP/CONEP. Os dados obtidos a partir dos participantes da pesquisa não poderão ser usados para outros fins além dos previstos no protocolo e/ou no consentimento livre e esclarecido.
IV.8 - Nos casos em que seja inviável a obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou que esta obtenção signifique riscos substanciais à privacidade e confidencialidade dos dados do participante ou aos vínculos de confiança entre pesquisador e pesquisado, a dispensa do TCLE deve ser justificadamente solicitada pelo pesquisador responsável ao Sistema CEP/CONEP, para apreciação, sem prejuízo do posterior processo de esclarecimento.” 


Referências bibliográficas:

CATECISMO da Igreja Católica. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola, 1999.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Resolução 4662012
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html



8 de ago. de 2017

Questões de bioética: Pesquisas com seres humanos

O século XX foi um século de muitas atrocidades com foco na vida humana. Aqui trata-se do recorte sobre a vida humana no contexto das pesquisas científicas que trouxeram grandes avanços. Porém, numa fase de boom inicial não tinham estabelecidos os regulamentos que garantissem o respeito à dignidade do ser humano. Tanto no contexto da Segunda Guerra Mundial como em pesquisas em geral que envolveram seres humanos, aconteceram situações que envergonham a humanidade.
Os julgamentos dos crimes de guerra, em Nürnberg, Alemanha, lançaram uma nova luz sobre os problemas relacionados às pesquisas científicas envolvendo seres humanos. Dos condenados, muitos eram da área de medicina em decorrência das atrocidades praticadas nas pesquisas com seres humanos vulneráveis dos campos de concentração. As três linhas principais se concentravam em testes de resistência, de controle de doenças contagiosas e dos gases de destruição. O legado foi o Código de Nürnberg, que traçou as linhas-mestras da ética em pesquisa com seres humanos. Desde então, a condição para a pesquisa é o respeito pela dignidade e autonomia do participante, da comprovação de relevância para toda a sociedade e da exigência de habilitação técnica e científica do pesquisador, entre outros. Entrou em cena a exigência do consentimento livre e esclarecido, entre outras garantias de pesquisa humanizada.
Em nível internacional alguns documentos importantes consolidam a preocupação da comunidade internacional em relação às pesquisas com seres humanos como: Declaração Universal do Genoma Humano e os Direitos Humanos (Unesco, 1997), Declaração sobre os Dados Genéticos Humanos (Unesco, 2004) e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (Unesco, 2005).
No Brasil foi criada relevante instância consultiva, deliberativa, normativa e educativa, que é a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), criada pela Resolução 196/96, ampliada e atualizada pela Resolução 466/2012. Além disso, em cada instituição de pesquisa deve ser formado um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), com a participação de uma equipe multidisciplinar, incluindo representante dos usuários; Além disso, foi criada a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), com a função de ampliar o debate dos assuntos de bioética e produzir suporte teórico diante de decisões relevantes sobre a vida humana e todas as formas de vida no planeta bem como planeta em si mesmo.
Para dar conta da ampla demanda das questões relativas às pesquisas com seres humanos e outras tantas que requerem um debate bioético amplo e bem fundamentado sob os aspectos técnicos e humanitários, multiplicaram-se os grupos de debates, estudos e de consultoria de bioética. Como o campo da bioética é um espaço relevante para a defesa da vida, a Igreja Católica, ela se engaja de modo particular pelo debate bioético. Em nível global, a Igreja tem representação significativa no âmbito da bioética. Entre outros, destacam-se Edmund Pellegrino (1920 - 2013), e o Cardeal Elio Sgreccia (1928), que desenvolveu a abordagem personalista. No Brasil, a Igreja, através da CNBB, promove e apoia iniciativas no sentido de formar comitês de bioética que possam dar consultoria às autoridades da Igreja e apoio aos seus fiéis. “Cabe a esses profissionais oferecer seus conhecimentos, à luz da ciência e da fé e iluminados pelo Magistério da Igreja, tendo como missão de apoiar o episcopado brasileiro no serviço evangelizador do Povo de Deus, acerca do valor e da dignidade da vida humana e para a construção da cultura da vida.” (Soares, Ramos, Moser, 2010, p. 118). Não basta, porém, criar um ambiente próprio para a reflexão bioética, isto porque ela exige, por sua natureza, um amplo diálogo com as demais ciências humanas e a diversas mentalidades que constituem a sociedade. “Em cada diocese encontram-se universidades, escolas, hospitais e órgãos governamentais ligados à saúde pública. Nestes contextos, uma Comissão Diocesana de Bioética poderá não só representar a voz da Igreja, mas testemunhar a relação entre fé e razão, além de exortar sobre o compromisso moral e social que devem ter os cientistas e profissionais de saúde.” (Soares, Ramos, Moser, 2010, p. 118).
A interpelação para cada cidadão, para cada cristão, é sobre seu engajamento pela vida em instâncias que garantam o respeito à dignidade humana. Não basta o escândalo, é preciso agir para evitar outros!


Referências


SOARES, André Marcelo; RAMOS, Dalton Luiz de Paula; MOSER, Antônio. Comissões Diocesanas de Bioética: Uma sugestão. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Questões de Bioética. São Paulo: Paulus, 2010. p. 113-127. Estudos da CNBB - 98.

7 de ago. de 2017

Questões de bioética: A doação de órgãos - um ato de gratuidade.

Um dos grandes problemas e preocupações hoje tem relação com a doação de órgãos. Para os receptores é, muitas vezes, a única esperança de sobrevida, porém, depende de doadores e implica numa complicado processo estrutural e técnico. No Brasil em torno de 43% das famílias não liberam os órgãos para doação. Outras vezes, há disponibilidade de órgãos, mas faltam as condições para que o transplante seja efetivado.
A atitude das famílias em se opor à doação é compreensível! Num mundo onde o consumismo e utilitarismo valorizam a pessoa segundo o que pode oferecer para o sistema, o temor de que o ente querido tenha sua vida tomada com o fim específico da “utilidade” de seus órgãos faz sentido. Outro ponto relevante é o desconhecimento do processo de doação, o que leva ao mesmo temor. Na hora de fragilidade é difícil para a familiar acompanhar o processo e assim ter a certeza de que tudo foi realizado dentro dos protocolos aceitos pela comunidade médica internacional e regulamentada pelas leis locais.   
O primeiro passo é compreender o significado da doação. “Numa época como a nossa, com frequência marcada por diversas formas de egoísmo, torna-se cada vez mais urgente compreender quanto é determinante para uma correta concepção da vida entrar na lógica da gratuidade.” (Bento XVI, 2008). A gratuidade é essencial para que a doação não entre na lógica do mercado e garanta a acessibilidade universal.  “A doação de órgãos é uma forma peculiar de testemunho da caridade.” (Bento XVI, 2008). O Magistério da Igreja Católica vem repetindo e ampliando o ensinamento sobre doação assegurada no catecismo e alertando para a seriedade dos procedimentos.
Vamos ao catecismo:
“A doação de órgãos após a morte é um ato nobre e meritório e merece ser encorajado como manifestação de generosa solidariedade.” (Catecismo da Igreja Católica, 1999, p. 597).
O transplante de órgãos é conforme à lei moral se os riscos e os danos físicos e psíquicos a que se expõe o doador são proporcionais ao bem que se busca para o destinatário.” (Catecismo da Igreja Católica, 1999, p. 597).
“O transplante de órgãos não é moralmente aceitável se o doador ou seus representantes legais não tiverem dado seu expresso consentimento para tal.” (Catecismo da Igreja Católica, 1999, p. 597).
“É moralmente inadmissível provocar diretamente mutilação que venha a tornar alguém inválido ou provocar diretamente a morte, mesmo que seja para retardar a morte de outras pessoas.” (Catecismo da Igreja Católica, 1999, p. 598).
O segundo passo é reconhecer a soberania da vontade da pessoa. Ela pode ou não liberar, através da manifestação aos familiares, os órgãos para doação. A Igreja ensina também a respeitar a vontade do possível receptor. Também ninguém pode ser obrigado a receber órgãos. Uma das condições fundamentais para que a pessoa possa se manifestar a respeito é que “seja adequadamente informada sobre os processos nele implicados, a fim de exprimir de modo consciente e livre o seu consentimento ou a sua recusa.” (João Paulo II, 2000, n. 3).
O terceiro passo é informar-se a respeito dos procedimentos (particularmente por parte da família) e, se achar necessário, acompanhar o processo pessoalmente ou pessoa de confiança indicada. É bom não submeter a pessoa a um processo, mesmo que parcialmente desconhecido. Saber sobre cada etapa e os protocolos próprios evita que no futuro haja desconfianças e dúvidas quanto à decisão tomada. Por acontecer em situação difícil e vulnerável é bom trazer o assunto antecipadamente ao debate familiar de forma que se tenha certeza quanto aos desejos do familiar e aos procedimentos próprios da doação. Isto facilita o processo, pois as decisões devem ser rápidas e não há tempo hábil para contatos ou conversas mais demoradas entre familiares.  
 O quarto passo, já acima incluído, é o cuidado com a certificação da morte. Somente depois de confirmada a morte, podem iniciar os procedimentos na doação post-mortem. Sem esta, pode-se incorrer em eutanásia.  “É oportuno recordar que a morte da pessoa é um evento único, que consiste na total desintegração do complexo unitário e integrado que a pessoa é em si mesma, como consequência da separação do princípio vital, ou da alma, da realidade corporal da pessoa. A morte da pessoa, entendida neste sentido original, é um evento que não pode ser diretamente identificado por qualquer técnica científica ou método empírico. (João Paulo II, 2000, n. 4) Quem define a morte é a ciência, mas é preciso sempre questionar se de fato houve a desintegração da unidade da pessoa de forma irreversível. “A Igreja não toma decisões técnicas, mas limita-se a exercer a responsabilidade evangélica de confrontar os dados oferecidos pela ciência médica com uma concepção cristã da unidade da pessoa.” (João Paulo II, 2000, n. 5). Portanto, é preciso dialogar constantemente com as ciências médicas para garantir a lisura e moralidade do processo de transplantes de órgãos.
A exigência de protocolos “compartilhados pela comunidade científica internacional, da cessação total e irreversível de qualquer atividade encefálica (cérebro, cerebelo e tronco encefálico), como sinal da perda da capacidade de integração do organismo individual como tal”. (João Paulo, 2000, n. 5), tem a pretensão de garantir a seriedade dos processos.
A doação é particularmente complexa em regiões de precárias condições econômicas, onde o conhecimento, acessibilidade e disponibilidade financeira impactam sobre os sistemas de saúde. Além disso, o povo é vulnerável ao tráfico de órgãos, podendo estas áreas serem meros “fornecedores” de órgãos para as regiões favorecidas economicamente. A gratuidade da doação de órgãos é uma exigência de muitos regulamentos locais, mas nem de todos e também nem todos os países regulamentaram a doação. Por isso, com muita razão, a Igreja, conforme já indicado, defende a gratuidade e a inviolabilidade da vida. Em nada, se justifica “desintegrar” uma pessoa em vista do bem que poderia fazer com a doação de órgãos.
 Os cuidados indicados podem favorecer a doação no sentido cristão da caridade. A doação não pode afetar negativamente a vida de alguém, mas promover a vida, quando é possível conciliar entre o bem do doador e o do receptor, ela é bem-vinda. Importante é “evitar preconceitos e incompreensões, afastar desconfianças e receios para os substituir com certezas e garantias a fim de permitir o incremento em todos de uma consciência cada vez mais difundida do grande dom da vida”. (Bento XVI, 2008).


Bibliografia

BENTO XVI. Discurso aos participantes do Congresso Internacional sobre doação de órgãos (2008). Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/Benedictxvi/pt/speeches/2008/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20081107_acdlife.html>.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola, 1999.

JOÃO PAULO II. Discurso aos participantes do XVIII Congresso Internacional sobre os Transplantes (2000). Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/2000/jul-sep/documents/hf_jpii_spe_20000829_transplants.html>.

3 de ago. de 2017

Questões de bioética: os cinco estágios da morte - Elisabeth Kübler-Ross


Grande referência no estudo da morte (tanatologia) é, sem dúvida, Elisabeth Kübler-Ross. Kübler-Ross nasceu na Suíça, mas viveu nos EUA, onde acompanhou milhares de pessoas no estágio final da vida. É defensora dos cuidados paliativos por entender a urgente necessidade de humanização e cuidado a fim de que as pessoas possam viver com sentido de vida até o fim da vida. A projeção internacional do seu trabalho se deu ao publicar, em 1969, o livro Sobre a morte e o morrer [On death and dying]. Ela diz:

“Quanto mais avançamos na ciência, mais parece que tememos e negamos a realidade da morte. Como é possível? Recorremos aos eufemismos; fazemos com que o morto pareça adormecido; mandamos que as crianças saiam, para protegê-las da ansiedade e do túmulo reinantes na casa, isto quando o paciente tem a felicidade de morrer em seu lar; impedimos que as crianças visitem seus pais que se encontram à beira da morte nos hospitais; sustentamos discussões longas e controvertidas sobre dizer ou não a verdade ao paciente, dúvida que raramente surge quando é atendido pelo médico da família que o acompanhou desde o parto até a morte e que está a par das fraquezas e forças de cada membro da família.” (Kübler-Ross, 1996, p. 19).

 Ao contrário de tantas outras coisas, a morte é a coisa mais certa da vida. Embora, trabalhe a questão de forma ampla, ela dá um sentido à vida a partir da esperança da não finitude absoluta: “Morrer é como mudar-se de uma casa para outra mais bonita.” (Kübler-Ross, 2007, p. 11). Ela trata, portanto, a questão como um novo nascimento, o que abre uma perspectiva nova. “A experiência da morte é quase idêntica à do nascimento. É como nascer para uma vida diferente, que pode ser vivida com muita simplicidade. Por milhares de anos você foi levado a “acreditar” nas coisas do além. Mas, para mim já não se trata de acreditar, mas de saber.” (Kübler-Ross, 2007, p. 10). As suas observações e pesquisas identificaram uma percepção semelhante no final da vida, porém, com elementos próprios das crenças individuais.
Kübler-Ross é conhecida por defender cinco estágios que a pessoa passa no final da vida, evidentemente se fala de uma possibilidade de consciência da situação. Defendemos os estágios, porém, a sequência é um caminho muito particular, podendo ter idas e vindas, o que é bom observar quando se trata de acompanhar alguém neste estágio.
Os cinco estágios foram desenvolvidos por Kübler-Ross, no livro Sobre a morte e o morrer - do cap. III ao cap. VII.

1.      A negação:

    “Não, eu não, não pode ser verdade!” (Kübler-Ross, 1996, p. 51). A primeira reação é a da não aceitação. Eu tinha tanto ainda para viver.... É preciso algum tempo para assimilar a informação sobre o real estado de saúde, portanto, mais do que conselhos, a pessoa precisa ser ouvida, acolhida e compreendida.

2.      A raiva 

    “Não, não é verdade, isso não pode acontecer comigo!” (Kübler-Ross, 1996, p. 63). A raiva já indica um estágio de compreensão da própria condição. Ela vem muitas vezes acompanhada com a alteração da rotina, da interrupção de atividades, o que muda substancialmente o modo de viver e acentua a percepção do fim iminente. 

3.      A barganha

 “Se Deus decidiu levar-me deste mundo e não atendeu meus apelos cheios de ira, talvez seja mais condescendente se eu apelar com calma.” (Kübler Ross, 1996, p. 95).  Já tenho experimentado profundamente a incapacidade do domínio sobre a própria vida, já tendo buscado uma força transcendente, a barganha significa uma última opção para que efetivamente algo desejado – a libertação da morte naquele momento – aconteça efetivamente. A barganha inclui moeda de troca. Neste estágio há muitas promessas, por vezes secretas. Já o comportamento agressivo do estágio anterior tende a desaparecer e, no lugar dele, a pessoa se torna mais calma e reflexiva.

4.      A depressão

A própria debilidade física e psíquica da pessoa vai indicando o fim próximo. Além disso, o ambiente externo vai dando sinais de que algo está diferente. Particularmente neste estágio, a pessoa acaba recebendo visitas que, antes, eram raras ou mesmo ausentes. Mesmo na falta de uma boa comunicação entre equipe médica e familiares ou cuidadores legalmente constituídos, o ambiente comunica algo. É um estágio particularmente difícil se a pessoa não está devidamente informada e ao mesmo tempo ela vai captando “no ar” algo de estranho sobre sua pessoa.

5.      A aceitação

É o último estágio, portanto, de plena consciência de que está acontecendo. Neste estágio, a pessoa aceita sua condição e é extremamente relevante que se criem possibilidades de, segundo suas condições, poder permanecer integrada nos seus ambientes, que realize seus desejos. De modo especial, deve-se cuidar e entender, talvez só nas entrelinhas, suas últimas necessidades: de resolver coisas pendentes. Estas podem ser de ordem econômica, relacional, espiritual. É neste estágio que surge a vontade de ver alguma pessoa distante de pedir ou ter o perdão de algum familiar. Pais jovens, por vezes, precisam saber sobre o cuidado de seus filhos. É um estágio importante também para o cuidado espiritual, segundo a crença de cada um.  

Compreender as cinco fases observadas por Kübler-Ross ajuda a ajudar de forma mais acertada nestas fases distintas, embora não se possa defendê-las como uniformidade e, sim, nas suas manifestações sempre individualizadas. Elas podem não ter uma sequência tão distinta, mas condições pessoais podem permitir que algum estágio vencido volte a se manifestar. Um exemplo concreto, são situações como a informação sobre tratamentos disponíveis em algum lugar antes não conhecido, algumas pessoas que convencem e reanimam a partir de alguma promessa na linha da fé... A própria personalidade da pessoa torna este caminho bem particular e sempre novo de modo que não se pode prescrevê-lo ou segui-lo a partir de descrições anteriores.

Bibliografia

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. A morte: um amanhecer. 6. ed. São Paulo: Pensamento, 2007.
______ Sobre a Morte e o Morrer. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Tradução: Paulo Menezes.


2 de ago. de 2017

Bioética.... desde quando?


Fritz Jahr é um nome que aparece há pouco tempo quando se trata do desenvolvimento da bioética. No entanto, o termo bioética e o imperativo bioético, segundo o estado atual das pesquisas, remontam ao ano de 1926. Portanto, ele é o pioneiro, segundo conhecimentos atuais. Em 2012 fui convidada a compartilhar o resultado da minha pesquisa de bioética no “Círculo de Estudos sobe Ética na Europa Central e do Leste.” O evento aconteceu nas dependências da Universidade de Halle-Wittenberg, na cidade de Halle, Alemanha, terra natal de Fritz Jahr. Na oportunidade apresentei o tema “Fritz Jahr e a abordagem ecológica na Teologia Católica hoje.” (Fritz Jahr und der ökologische Ansatz der katholischen Theologie heute). Foi neste evento que foram apresentados os últimos achados de Fritz Jahr e a data do delineamento e primeiro uso do termo bioética foi antecipada para 1926, a última data era 1927.  Portanto, hoje se conhece como uso pioneiro do termo bioética, na grafia da época, bio-ética [Bio-Ethik), o texto de Fritz Jahr “Ciência da vida e ética”[1], de 15 de dezembro de 1926. Já, no ano segunte, em 1927, Fritz Jahr escreve um editorial na revista científica Kosmos, onde foca o termo bioética e, de forma suscita e compacta, elabora as linhas-mestras de seu pensamento a respeito do tema: “Bioética, 1927, – Revendo as relações éticas dos seres humanos com os animais e plantas[2]”. Jahr aponta para a necessidade do termo em vista dos desafios relacionados à vida. De um lado, não conhecia ainda os avanços biomédicos mais impactantes, como é a realidade hoje, mas vislumbrava um futuro preocupante, caso não se fosse ao encontro dele com profundo sentido de ética da vida. A primeira questão é que a ética que, tradicionalmente estava relacionada ao comportamento humano e a convivência com seus semelhantes, abriu o leque e incluiu o cuidado dos animais e plantas, em suma, todas as formas de vida. Foi uma época em que se tomou consciência das interconexões e interdependências de todas as formas de vida. Uma questão de compaixão para com o outro e da própria sobrevivência.   
O autor reconhece a contribuição das ciências para analisar as realidades do mundo, antes uma prerrogativa da filosofia e das religiões. “As ciências naturais modernas sempre terão o papel de apresentar um estudo imparcial sobre o mundo [Weltgeschehen]”[3]. Foram elas, as ciências, que permitem um olhar objetivo sobre o mundo. Para o autor é importante que cada campo do saber tenha autonomia e sistema próprio para avançar no seu respectivo conhecimento.  Para Jahr, o conteúdo da bioética não é grande novidade e cita Francisco de Assis (1182-1226), conhecido pelo seu grande amor e compaixão pelos animais.  
Jahr cita diversos autores e, somente olhando para estes, é possível conhecer o pano de fundo de suas reflexões. Entre eles, vale destacar o filósofo Krause que, no ano de 1811 e anos subsequentes, deixou como legado principal alguns conceitos relativos à teoria dos sistemas. Outros nomes são Schopenhauer (1788-1860), Richard Wagner (1813-1883), Ed. Von Hartmann (1842-1906), todos eles contribuíram para o reconhecimento da necessidade de uma relação de compaixão para com todos os seres vivos. Jahr, no entanto, não assume a ideia tal qual elas são, pois suas reflexões incluem os valores cristãos, ou seja, o mandamento do amor. Não matar, segundo Jahr, aplica-se a todos os seres vivos.
Na Europa da época, já haviam regulamentações de proteção aos animais, porém, “com as plantas, é diferente. Para alguns, a princípio, pa­rece irracional ter obrigações éticas com elas”[4]. Outro alerta de Jahr que, mais do que naquela época, faz sentido hoje, é o fato de ele ressaltar a falta de cuidado para com as riquezas naturais abundantes ou ainda não em risco de extinção. Ele reconhecia a necessidade  da responsabilidade ética por terem todos os seres vivos um fim em si mesmo e não poderiam ser medidos só pelo fato de ainda existir em abundância ou não. Ao pautar suas reflexões em diferentes autores e culturas, Jahr não pretende uma m

“Ademais, nossas regulamentações previstas em lei e pela polícia protegem plantas específicas e flores de determinadas áreas (tais como as plantas nos Alpes), e se baseiam em suposições totalmente distintas. A polícia estadual [Polizeistaat] pretende impedir a extin­ção dessas plantas em tais áreas para que outras pessoas as admirem no futuro. Quando houver uma grande quan­tidade de plantas, o estado não intervém para evitar que acabem”[5].


Jahr defende todas as formas de vida ressaltando sempre o direito de serem respeitadas segundo suas particularidades. O que define a forma de cuidado são as exigências próprias da natureza de cada forma de vida. E mesmo quando o sofrimento for necessário, que seja minimizado quanto possível. Na verdade, ele propõe atitudes que, mais tarde, foram asseguradas nas regulamentações da ética em pesquisa. Aqui, ele converge com Albert Schweitzer quando analisa o sofrimento próprio do viver de cada ser vivo. Há sofrimentos inevitáveis, mas nenhum sofrimento pode ser imposto sem “motivos razoáveis”.




[1] JAHR, Fritz. Ensaios em ética e bioética 1927-1947, In: PESSINI, Leo et al. Ética e Bioética Clinica e Pluralismo – com ensaios originais de Fritz Jahr. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2013, p. 455-501, p. 459.
[2] JAHR, 2013, p. 461.
[3] JAHR, 2013, p. 461.
[4] JAHR, 2013, p. 463.
[5] JAHR, 2013, p. 464.