Em tempos de pandemia... (texto pdf, solicitar via contato desta página)

Discípulo missionário e exercício da cidadania:
- desafios em tempos de pandemia e instabilidade política

Dr.ª Geni Maria Hoss
teóloga, bioeticista


Chamados a ser luz do mundo (cf. Mt 5, 14), os discípulos missionários se encontram hoje diante de um grande desafio: Como dar testemunho do Evangelho em tempos de pandemia, situação agravada pelo emaranhado político que hoje se apresenta?  

Uma realidade particularmente desafiante. A polarização, intolerância e violência psíquica e física dela decorrentes já estavam instaladas quando a pandemia do coronavírus chegou e se alastrou. As redes sociais, desde a sua popularização, são meios utilizados para ataques e desrespeito e pouco esclarecimento objetivo. Uma verdadeira epidemia de notícias falsas, que prejudicam e desinformam, mais ainda, promovem o ódio e a intolerância, se alastram sempre mais, principalmente aquelas relacionadas com a política e a saúde. Com a chegada da pandemia, o esforço de resolver o problema e usar os mesmos meios para disseminar informações objetivas e úteis tiveram menos adesão do que as notícias falsas e tendenciosas. Isto se deve, em grande parte, ao fato de os avanços tecnológicos, que permitiram informações em tempo real e de amplo alcance, não ser acompanhado com um correspondente crescimento do debate ético pautado, sobretudo, no valor da verdade e da dignidade humana, por isso deixam um grande vácuo. As informações muitas vezes são aceitas sem a devida análise crítica e discernimento. É neste vácuo que surge um verdadeiro campo de ação livre e promissor para as notícias falsas, tendenciosas e bem articuladas para convencer os seus interlocutores. Viver num mar de informações não garante sabedoria de vida. Com razão, o filósofo Polonês Baumann (2016) adverte: “Como E. O. Wilson, o grande biólogo, expressou de forma muito sucinta e correta: ‘Estamos nos afogando em informações e famintos por sabedoria.’ Não temos tempo de transformar e reciclar fragmentos de informações variadas numa visão, em algo que podemos chamar de sabedoria. A sabedoria nos mostra como prosseguir. Como o grande filósofo Ludwig Wittgenstein dizia: ‘Compreender é saber como seguir adiante.’ E é isso que estamos perdendo. Não sabemos como prosseguir” (Baumann, 2016). Poderíamos aqui acrescentar: só sabemos que, em muitos casos, não passamos de escravos modernos de opinião alheia. Quando apetece, ela é absorvida e defendida com garra, se vai na contramão das próprias convicções, mesmo que carecem de fundamentos sólidos.
Após à expansão da pandemia, muitos doentes e muitas mortes, o negacionismo da pandemia e a incredulidade nas ciências persistem. Além disso, acentuou-se a polarização orientando inevitavelmente as atenções para as turbulências políticas com prejuízo ao cuidado necessário para administrar de forma responsável a pandemia do coronavírus e assegurar comportamentos adequados para o bem comum. A urgência da união dos cidadãos para reivindicar gestão pública responsável para o bem de todos, tomada de decisões e providências ficou em segundo plano. O que aconteceu de fato foi o acirramento dos ânimos e não foram poucos os que optaram por se digladiar nas redes sociais. Isto, porque em ambientes polarizados só existem dois extremos: os certos e os errados, sendo naturalmente errados os outros. Geralmente ambos os lados se alimentam de convicções que carecem de argumentação e acentuam as denúncias recíprocas. Infelizmente saem de cena os programas e promessas políticas que levaram o eleitor a escolher o gestor público e focaliza-se em comparação entre “inimigos”, não adversários. A pretensa “fundamentação” muitas vezes não passa de comparação agressiva e desrespeitosa no intuito de demonstrar que “o outro” fez e faz política pior que esta. Daí se explica uma narrativa permeada de linguajar de baixo calão e destruidor da opinião alheia. Outro grande problema de uma adesão radical sem senso crítico e discernimento é que os erros cometidos sejam distorcidos em “verdades” para não precisar admitir a necessária autocrítica. Em relação ao passado, isto implica em negação de momentos sombrios da história e, no presente, acontece que a mesma atitude, ora é considerada “correta”, ora, “errada”, dependendo apenas se se trata do polo defendido ou do polo “inimigo”.  Há, portanto, discrepâncias e incoerências, um contratestemunho evangélico, a serem superados, colocando-se de novo no centro o cuidado da vida, o engajamento pelo bem comum, diante de tantas ameaças e descasos que ora reina na sociedade.

Um chamado para transformar a realidade à luz dos valores evangélicos. Os discípulos missionários iluminam esta realidade ao testemunharem o amor fraterno, a verdade, a acolhida do outro e se engajarem efetivamente a fim de que a vida seja colocada no centro. A melhor contribuição nos meios de comunicação onde se disseminam ódios e mentiras é a propagação dos valores do Evangelhos, da promoção da vida. A promoção da vida não se limita a cuidá-la em condições de risco de saúde, mas inclui todas as suas condicionantes como: alimentação, moradia, saneamento básico, formação humana e profissional, etc. Isto tanto na oferta das estruturas indispensáveis bem como renda necessária que garantam vida digna para o cidadão e sua família. Só quem conhece e vive a sua fé na vida cotidiana está suficientemente fortalecido para testemunhá-la em situações tão adversas como conhecemos hoje na sociedade.
Para isso é importante que se entenda a missão de ser luz no mundo, marcando presença significativa na vida da sociedade e política, a partir dos princípios e diretrizes apresentadas no Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI) [1]. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que falar da DSI não é equivalente à defesa de qualquer linha político-partidária. A política como organização e gestão do bem comum diz respeito a todos. A distorção do papel da política ou sua compreensão superficial leva a defesas calorosas de separação do inseparável. Cada cristão, a quem se destina a Doutrina Social em primeiro lugar, está naturalmente inserido na organização social e política como cidadão que é e, por isso, cabe-lhe iluminar estas realidades e testemunhar nelas os valores do Evangelho. O CDSI apresenta a síntese das diretrizes essenciais dos documentos sociais anteriores, a começar pela conhecida Encíclica Rerum Novarum, 1891, do Papa Leão XIII. Aqui abordamos somente alguns elementos essenciais relevantes para a situação da hora.

A consciência e discernimento: A consciência e liberdade são dimensões fundamentais da pessoa. Sem elas, não se pode falar de respeito à dignidade da vida humana. Ninguém tem autoridade sobre a consciência do outro. Na visão do Concílio Vaticano II, apresentada na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS),  vemos que “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (GS, 1965, n. 16). Debates e aconselhamentos podem interpelar a pessoa e a incitar a busca pela verdade, mas, em última análise, sempre orientada pela própria consciência.  “Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social” (GS, 1965, n.16).
O primeiro ponto a considerar é a consciência inerente ao ser humano. Sim, há algo que a pessoa traz em si e que a impele a tomar decisões e atribuir valores: “No presente texto emerge ademais a importância dos valores morais, fundamentados na lei natural inscrita na consciência de todo ser humano, que por isso está obrigado a reconhecê-la e a respeitá-la” (CDSI, 2011, Intr. n. 3).  Há necessidade de formação da consciência, ou seja, é preciso aprender a conhecer, apreciar e iluminar com os valores, sejam eles inerentes à pessoa ou aqueles que se reconhece no decorrer da vida como algo bom para si próprio e sua relação com o outro, a fim de que se chegue a decisões e ações coerentes. Só assim pode haver harmonia entre o que se acredita e o que faz como algo bom. Para isso, é tarefa de todos promover o conhecimento e debate a partir de diretrizes objetivas de forma que cada pessoa tenha suficiente argumento para decidir de forma livre e responsável, segundo a sua consciência. Aqui se percebe que qualquer julgamento arbitrário do outro está na contramão da dignidade humana uma vez que não somos tutelas da consciência de ninguém. Não significa proibição de apreciação, significa maior responsabilidade na promoção do conhecimento e do debate, da abertura para as diferentes opiniões. Claro que o assunto aqui é de pessoas adultas autônomas. Porém, isto também indica o quanto se deve ser cuidadoso ao lidarmos com situações limite, seja na responsabilidade de pais e educadores na formação da consciência dos filhos e educandos, seja em situação condicionante como saúde psíquica e mental, incluindo aqui a demência de algumas pessoas. Todos estes grupos merecem atenção especial, mas se deve ter em vista que, na sua própria condição, devem ser motivados e encorajados a viver sua liberdade e livre decisão.  
No contexto do CDSI vale aqui ressaltar também a consciência coletiva. Existe uma consciência de valores no núcleo familiar, em grupos de cooperação, a consciência nacional e bem como consciência de humanidade. Quanto mais se expande, tanto mais a consciência se concentra no essencial do ser humano. Por isso, a antiga e sempre nova questão: Existe uma ética universal? Quais sãos os valores essenciais globais?
A consciência bem formada é a base para o autêntico discernimento. Discernir não significa a posse de certezas, mas da constante busca pela verdade. À luz da fé, nesta busca recorremos ao Espírito Santo. Precisamos de uma luz que está além das fronteiras da percepção e conhecimento humano. Isto evita a tentativa de “encapsular” a verdade, limitando-a às próprias convicções. Neste sentido, diz o Papa Francisco a respeito do chamado do missionário. Ele “nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias seguranças, nunca opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada” (Papa Francisco, 2013, n. 45). O autêntico discernimento permite que se dê testemunho nos ambientes que carecem de luz, ambientes em que o ser humano é manipulado e instrumentalizado para fins adversos à sua dignidade. Não é tarefa dos discípulos missionários jogar ódio para todos os lados sobre aquelas pessoas, meios de comunicações e situações que lhe parecem conflitantes com seus valores. Quando isto acontece, ele não entendeu sua missão. Debate se faz com argumentos e, mais que isso, a sociedade precisa daqueles que são “luz do mundo”.  

Os discípulos missionários no mundo da política. A natureza da política e da Igreja é distinta quanto ao seu fim, mas ambos se concretizam nos mesmos espaços. O que caracteriza um estado laico não é a supressão das organizações religiosas, mas o respeito pelas diversas expressões de fé em seu território e a promoção do diálogo, particularmente em questões humanitárias.  “A Igreja e a comunidade política, embora exprimindo-se ambas com estruturas organizativas visíveis, são de natureza diversa quer pela sua configuração, quer pela finalidade que perseguem” (CDSI, 2011, n. 424). Se os fins da Igreja e da política são distintos, o mesmo não acontece em relação aos discípulos missionários e os cidadãos. Os discípulos missionários são membros da Igreja, são Igreja e são também cidadãos que constituem a sociedade. Por isso, “a autonomia recíproca da Igreja e da comunidade política não comporta uma separação tal que exclua a colaboração entre elas: ambas, embora a títulos diferentes, estão ao serviço da vocação pessoal e social dos próprios homens” (CDSI, 2011, n. 425). Se sobre um determinado assunto, um governo se propõe a um diálogo com a sociedade, como parte integrante desta mesma sociedade está a Igreja, cuja voz pode vir por parte de seus representantes, sobretudo, porém, através da presença significativa dos discípulos missionários nas diversas realidades. Respeitados os espaços e as finalidades de cada um, “a Igreja e a comunidade política podem executar ‘tanto mais eficazmente, para o bem de todos, este serviço, quanto mais cultivarem entre si uma sã cooperação, consideradas também as circunstâncias dos tempos e lugares” (CDSI, 2011, n. 425). À luz dos valores do Evangelho, a Igreja entende sua vocação no mundo para além da manifestação da fé e devoção, assim como Jesus, ela vai ao encontro dos doentes, dos pobres, ela se empenha por condições de vida digna de todos os seres humanos, entende-se como luz em todas as realidades humanas. Por este motivo, ela reivindica “liberdade de associar-se para fins não só religiosos, mas também educativos, culturais, sanitários e caritativos” (CDSI, 2011, n. 426).
A presença na sociedade, como dito acima, não se limita à sua atuação por vias institucionais. São os discípulos missionários enviados para ser luz em todas as realidades humanas que são especialmente chamados à transformar as estruturas sociais. O âmbito da política entendido como espaço de gestão do bem comum e de engajamento pelo bem de cada cidadão é bem por isso um espaço onde o discípulo missionário cumpre seu dever cidadão. É importante aqui discernir entre política e politicagem e, igualmente, entender que se trata das diversas formas de participação política, muito além de uma pertença a um determinado partido. É neste sentido amplo que se deve entender a missão do discípulo missionário sem, contudo, excluir a participação político-partidária. Também estas estruturas precisam ser iluminadas e interpeladas quanto aos seus fins em vista do bem comum.

Um âmbito particular de discernimento dos fiéis leigos diz respeito as escolhas dos instrumentos políticos, ou seja, a adesão a um partido e às outras expressões da participação política. É preciso fazer uma escolha coerente com os valores, tendo em conta as circunstâncias reais. Em todo o caso, qualquer escolha deve ser radicada na caridade e voltada para a busca do bem comum” (CDSI, 2011, n. 573).

A participação do discípulo missionário começa pelo desafio de uma votação bem feita. Mais uma vez é preciso acentuar que esta acontece no “santuário da consciência” de cada um e ninguém pode ser recriminado por suas escolhas. Muito menos grupos eclesiais podem definir uma escolha coletiva. Mais importante que isso são os debates objetivos e bem fundamentados que antecipam estas escolhas e o controle social posterior às eleições. Sobre as escolhas, diz o CDSI:

“As instâncias da fé cristã dificilmente podem ser encontradas numa única posição política: pretender que um partido ou uma corrente política correspondam plenamente às exigências da fé e da vida cristã gera equívocos perigosos. O cristão não pode encontrar um partido plenamente às exigências éticas que nascem da fé e da pertença à Igreja: a sua adesão a uma corrente política não será jamais ideológica, mas sempre crítica, a fim de que o partido e o seu projeto político sejam estimulados a realizar formas sempre mais atentas a obter o verdadeiro bem comum, inclusive os fins espirituais do homem” (CDSI, 2011, n. 573).

Portanto, seja qual for a sua escolha, a posição do discípulo missionário será sempre crítica. Não existe o político perfeito, não existe o partido perfeito. Cabe votar com responsabilidade evitando a polarização ao endeusar uns e demonizar outros, valendo-se para isso de um linguajar agressivo e desrespeitoso. Porque aplausos cegos costumam reforçar e prolongar erros. “Nós estamos tão habituados a insultar os responsáveis. É inútil, e até chato, que os cristãos percam tempo a lamentar-se do mundo, da sociedade, daquilo que está errado. As lamentações não mudam nada”. (Papa Francisco, 2020). Também aqui vale lembrar os insultos que permeiam as redes sociais. Insultar não é sinônimo de posicionamento crítico e muito menos tem alguma utilidade para melhorar a situação. Expressar-se desta forma denuncia a falta de critérios e diretrizes para garantir a presença significativa e iluminadora na sociedade.  O CDSI ensina:

A distinção, de um lado, entre instâncias da fé e opções sociopolíticas e, de outro lado, as opções de cada cristão e as realizadas pela comunidade cristã enquanto tal, implica que a adesão a um partido ou corrente política seja considerada uma decisão a título pessoal, legítima ao menos nos limites dos partidos e posições não incompatíveis com a fé e os valores cristãos. A escolha do partido, da corrente política, das pessoas a quem confiar a vida pública, mesmo empenhando a consciência de cada um, não pode ser entendida como uma escolha exclusivamente individual: É às comunidades cristãs que cabe analisar, com objetividade, a situação própria do seu país e procurar iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre, haurir princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação, na doutrina social da Igreja’” (CDSI, 2011, n. 574).

Portanto, nada de achismos e egoísmo, nada de olhares estreitos. É preciso abrir os horizontes para o nível de todos os desafios do país e de toda população e evitar o apenas o benefício próprio. Não se trata, portanto, de escolher alguém que plantou uma árvore no nosso quintal, mas alguém que saiba cuidar de uma floresta.
Reforçando: A DSI chama atenção para diferentes formas de participação política. Ao fazer isto, ela defende uma instância fundamental da democracia. Votação popular é apenas uma de suas expressões. A participação dos cidadãos, de forma individual ou organizada num coletivo, não é somente desejada, mas necessária para que haja efetiva democracia.

A participação na vida comunitária não é somente uma das maiores aspirações do cidadão, chamado a exercitar livre e responsavelmente o próprio papel cívico com e pelos outros, mas também uma das pilastras de todos os ordenamentos democráticos, além de ser uma das maiores garantias de permanência da democracia. O governo democrático, com efeito, é definido a partir da atribuição por parte do povo de poderes e funções, que são exercitados em seu nome, por sua conta e em seu favor; é evidente, portanto, que toda democracia deve ser participativa.  Isto implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha.” (CDSI, 2011, n. 190)

Há diversas formas de organização de participação e engajamento pelo bem comum e, não em última análise, realizar experiências e capacitações para lideranças políticas. A participação em movimentos, conselhos comunitários, de natureza diversa como saúde, segurança... além de atuar onde o cidadão de fato precisa, é uma excelente escola de formação de líderes. É nestes espaços que é possibilitado a cada cidadão reivindicar seus direitos e também fazer o controle social daqueles que tem a responsabilidade do bem comum nas mãos. A ausência e inércia do cidadão nestes espaços permite que os políticos eleitos se desviem de seus programas de campanha eleitoral, se envolvam em corrupção e fazem mau uso do dinheiro público, desviando os impostos para benefício próprio. Outras instâncias de participação são os meios virtuais como portal da transparência, as ouvidorias e também as assembleias de bairro onde se delibera sobre as prioridades para o uso do dinheiro público. Nenhum destes espaços pode ficar ocioso.

Participação política e lições da pandemia. No momento presente é inevitável não tocar no assunto da pandemia. Uma pandemia é por si mesmo algo desconhecido e implica em desafios antes nunca enfrentados. É por ser uma situação muito complexa que ela deixa muitas lições. Seguem algumas:
¾    Ou reagimos rapidamente, mesmo que de certa forma no escuro, ou permitimos impactos ainda mais graves.
¾    Teorias conspiratórias (diga-se, sem apresentar comprovação) e o negacionismo são péssimo negócio e só atrapalham.
¾    A verdade não gera pânico para pessoas que costumam orientar-se em princípios, diretrizes bem fundamentadas, conhecimento de causa. O mesmo não acontece com as fake News. Notícias falsas geralmente agradam ao ouvido, mas não informam, apenas ajudam a nos alienar, além disso, podem tornar-nos escravos de robôs.
¾    Valorizar a ciência é urgente. Compreender que o tempo da ciência é incompatível com a nossa ansiedade. Promessas de remédios rapidamente disponíveis são promessas enganosas. A eficácia dos remédios é uma questão científica e não política. Não há medicação universal, mesmo os medicamentos já existentes devem ser comprovados. Como em todas as áreas, alguns são profissionais de saúde, outros profissionais de saúde e cientistas: também os profissionais de saúde precisam de informações e orientações comprovadas pelas ciências. Aprender ciências na escola não é supérfluo. Entender um processo científico é fundamental para se acreditar nela e não cair nas falácias do achismo.
¾    As aulas de matemática sobre a curva exponencial foram importantes, sim. Uma curva exponencial não é um traçado do destino invariável, mas uma informação que nos permite tomar decisões que mudem o seu traçado no sentido positivo. 
¾    O egoísmo não é só prejudicial para a própria pessoa, mas para toda a coletividade. Descuidar das orientações quanto ao distanciamento social e uso de equipamentos de prevenção é brincar a própria vida e também da vida dos outros. “Quem cumpre seus próprios deveres consigo próprio evita muitas maneiras de prejudicar outras pessoas” (Jahr, 2013, p. 482). É preciso refletir sobre as consequências das ações, no caso, de falta de cuidado, pois o arrependimento pode vir tarde demais.
¾    Cada pessoa é importante, a tragédia não precisa bater na própria porta para levar a sério o cuidado pela vida.
¾    É incoerente se apresentar como “defensor da vida” à luz dos valores do Evangelho e não se cansar de banalizar a vida nas redes sociais ao incitar para o desrespeito das orientações da Saúde. A defesa da vida é desde o início até o fim natural.
¾    A polarização, a intolerância, a falta de objetividade e conhecimento no debate político acentuam a falta de respeito, julgamentos arbitrários, sentimentos de superioridade em todas as linhas, batendo de frente com o valor evangélico do amor ao próximo.
¾    A pandemia jogou no ar todos os desafios que enfrentamos no momento: reforçou a polarização, mostrou a falta de conhecimento da gestão pública, do sistema de saúde deficitário e da falta de controle social para melhorá-lo.
¾    A corrupção não dá tréguas, é um vício. Nem mesmo uma tragédia evita a sua disseminação.
¾    Não entendemos o suficiente a interdependência global, tanto pela expansão da pandemia bem como pelas possibilidades de escolhas. Confrontamo-nos com a dependência das tecnologias e insumos, particularmente no mundo da saúde. 
¾    Etc.

Considerando-se que somos um país de muitos cristãos, de muitos discípulos missionários, pode-se tomar como convite à reflexão a conclusão do Papa Francisco: 

“Apesar de se notar uma maior participação de muitos nos ministérios laicais, este compromisso não se reflete na penetração dos valores cristãos no mundo social, político e econômico; limita-se muitas vezes às tarefas no seio da Igreja, sem um empenhamento real pela aplicação do Evangelho na transformação da sociedade. A formação dos leigos e a evangelização das categorias profissionais e intelectuais constituem um importante desafio pastoral” (Papa Francisco, 2013, n. 102).


Consideração: Levando em conta o momento presente somos convidados a identificar, ao analisar os sinais dos tempos, os desafios para o presente e o futuro. Somos chamados a iluminar os espaços de trevas com a luz do Evangelho. O mundo virtual precisa de pessoas que testemunhem a verdade, o respeito, o amor fraterno. A sociedade precisa de cidadãos que se engajem pelo bem comum, por um mundo mais justo e solidário. As estruturas públicas de assistência à saúde precisam do controle social dos cidadãos de modo que se supere a corrupção e, consequentemente, se ofereçam melhores condições de assistência. Enfim, assumamos o desafio pastoral apresentado pelo Papa Francisco




Referências

Bauman, Zygmunt. "Estamos num estado de interregno. Vivemos na modernidade líquida” (Entrevista GloboNews 2016). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jan-01/zygmunt-bauman-neste-seculo-estamos-num-estado-interregno, Acesso: 29 jun. 2020.

Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1965). Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acessado: 25 jun 2020.

JAHR, Fritz. Ensaios em ética e bioética 1927-1947, In: PESSINI, Leo et al. Ética e Bioética Clinica e Pluralismo – com ensaios originais de Fritz Jahr. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2013. 455-501.

Papa Francisco. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013). Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html . Acessado: 20 jun 2020.
_____Homilia da Solenidade de São Pedro e São Paulo (29 jun 2020). Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2020/documents/papa-francesco_20200629_omelia-pallio.html . Acesso em: 30 jun 2020.

Pontifício Conselho “Justiça e Paz”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2011.




[1] O CDSI foi publicado em 2005 pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, com aval e aprovação do Papa da época, João Paulo II. 

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