Atualmente, o corpo está em evidência por
diversos motivos. Na sociedade consumista, a sua beleza e perfeição são
exaltados para se obter o máximo de lucros com os produtos de estética e beleza
sempre mais sofisticados disponíveis no mercado. Os avanços tecnológicos na
área da medicina permitem sonhar com sobrevida do corpo sempre mais longa e
confortável. Crescem os dilemas em torno da finitude insuperável do corpo. Nas religiões,
o corpo entra no debate do seu sentido e valor aqui e agora e também em vista
da dimensão escatológica. Não se pode, porém, abordar assunto de tal
abrangência com poucas palavras. Por isso, fazemos um recorte do pensamento da
Igreja Católica a partir do Concílio Vaticano II, incluindo sua contribuição para
o debate bioético. Fruto do diálogo com as ciências humanas, documentos como a
Constituição Pastoral Gaudium et Spes abrem caminho para superar a dicotomia do
ser humano, afirmada por séculos, e reconhecer seu ser como um todo em sua
unidade e totalidade. “Corpore et anima
unus (uno de alma e corpo.” (Catecismo da Igreja Católica, 1999, n. 362). Ser humano,
em sua totalidade imagem e semelhança de Deus, exaltada por Cristo. "O
Filho de Deus, no mistério da Encarnação, confirmou a dignidade do corpo e da
alma, constitutivos do ser humano. Cristo não desdenhou a corporeidade humana,
mas revelou plenamente o seu significado e valor" (Congregação para a
Doutrina da Fé, 2008, n. 7).
O corpo, que já foi considerado um mal
necessário para a subsistência da alma, hoje, na perspectiva de visão integral
do ser humano, é reconhecido como essencial para a identidade do ser humano. O
ser humano, que é pessoa com dignidade em todos os momentos e circunstâncias,
pelo corpo estabelece relações e significados.
É na corporeidade que constrói e revela sua identidade, aquela essência que
o torna único e distinto dos demais. É no reconhecimento do corpo, com suas
dimensões próprias, que se pode afirmar sua capacidade de transcendê-lo, a sua
capacidade intrínseca de ter fé. “O homem é capaz de Deus” (CIC, 27-30)
Dissemos recuperação da
visão original do ser humano, pois na raiz da fé cristã, em sua Palavra
Sagrada, ele foi sempre imagem de Deus, em sua totalidade. “A antropologia bíblica exclui o
dualismo mente-corpo. O ser humano é considerado aí na sua integridade. Entre
os termos hebraicos fundamentais usados no AT para designar o ser humano,
nefesh significa a vida de uma pessoa concreta que está viva (Gn 9,4; Lv
24,17-18; Pr 8,35). Mas o ser humano não tem um nefesh, ele é um nefesh.
(Comissão Teológica Internacional, 2004, n. 28). Já o termo basar se refere à carne dos
animais e dos humanos, e às vezes ao corpo no seu conjunto (Lv 4,11; 26,29). Também neste
caso, o homem não tem um basar, mas é basar. O termo neotestamentário
sarx (carne) pode denotar a corporeidade material do ser humano (2Cor 12,7),
mas também a pessoa no seu conjunto (Rm 8,6). Outro termo grego, soma (corpo),
refere-se ao ser humano inteiro, pondo a ênfase na sua manifestação exterior. Também aqui
o homem não possui um corpo, mas é seu corpo. ” (Comunhão e Serviço n. 28).
Unicidade: o indivíduo tem relação com o
código genético de seus progenitores e ao mesmo tempo seu patrimônio genético é
novo e único. A expressão unitotalidade, marcante, da abordagem personalista,
surge para definir um novo paradigma sobre a pessoa. A distinção das diferentes
dimensões de uma mesma realidade não é sinônimo de separação e independência
das partes. As reminiscências da dicotomia corpo e alma e do mecanicismo, que
pressupõe o funcionamento do organismo segundo uma mecânica pré-definida
inalterável, são superados nesta abordagem. “Por força da sua união
substancial com uma alma espiritual, o corpo humano não pode ser considerado
apenas como um conjunto de tecidos, órgãos e funções, nem pode ser avaliado com
o mesmo critério do corpo dos animais. Ele é parte constitutiva da pessoa que
através dele se manifesta e se exprime.” (Congregação para a Doutrina da Fé,
1987, n. 3). Portanto, a verdade sobre o ser humano, a verdade revelada, trata
de um ser constituído de diversas dimensões relevantes para sua existência
histórica e sua esperança escatológica. Em Deus, o Filho, o ser humano se
conhece e reconhece. “A verdade revelada é verdade de salvação. É justamente
essa verdade que nos diz quem é o homem, fazendo-nos conhecer ao que ele é
chamado; precisamos pressupor uma coerência fundamental entre nosso ser e o
nosso destino se não queremos que este último apareça como algo meramente
exterior a nós mesmos.” (Ladaria, 2007, p. 12). O sentido pleno implica na
dupla realidade: presente e futura. A esperança na Ressurreição em Cristo
ilumina e significa a realidade presente. Por isso, nenhuma dimensão da experiência
humana no tempo e na história pode ser vista como algo inútil e secundário. Sobretudo,
porque ela é em vista da Ressurreição em Cristo.
Viver
no corpo é viver em movimento em busca do sentido último da existência.
Trata-se de um movimento não repetitivo, mas sempre novo, rumo à sua própria
realização plena. “O corpo não
apenas estabelece a relação com o mundo como também confere ao mundo
significados sempre novos, transcendendo continuamente as próprias experiências
e os significados precedentes.” (Sgreccia, 1996, p. 126). A experiência humana
é uma experiência de limites, próprios do espaço e do tempo. O corpo, no mundo
das ciências, pode ser descrito com suas propriedades físicas e leis próprias
que regem o desenvolvimento biológico, mas não pode ser reduzido “um simples
complexo de órgãos, funções e energias, que há de ser usado segundo critérios
de mero prazer e eficiência”. (João Paulo II, 1995, n. 23). O corpo tem
dignidade própria não podendo ser idolatrado e nem menosprezado. Ele não é a
única dimensão da vida humana, porém, essencial para que as outras dimensões possam
manifestar-se. “No homem, a personalidade subsiste na
individualidade constituída por um corpo animado e estruturado por um
espírito.” (Sgreccia, 1996, p. 79).
Olhando para Jesus, vemos que o corpo ocupa um importante espaço para sua
missão. Ele se volta à pessoa como um todo, portanto, também à sua dimensão
corpórea. “A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas,
indica quanto Deus tem a peito também a
vida corporal da pessoa.” (João Paulo II, 1995, n. 47, grifo do original). Através
de uma série de reflexões teológicas sobre o corpo, hoje reunidas sob o tema Teologia
do Corpo, João Paulo II lança uma nova luz sobre o corpo. Apresenta os desafios
do reducionismo tanto numa como em outra dimensão da vida humana devido ao significado
identificado na sua totalidade. “O homem cessa, por assim dizer, de
identificar-se subjetivamente com o próprio corpo, porque privado do
significado e da dignidade derivantes de este corpo ser próprio da pessoa. Encontramo-nos
aqui no limite de problemas, que muitas vezes exigem soluções fundamentais, impossíveis
sem uma visão integral do homem”. (João Paulo II, 1981).
Bibliografia
COMISSÃO Teológica
Internacional. Comunhão e Serviço: A
pessoa humana criada à imagem de Deus, 2004. Disponível em:
<http://www.vatican.va/roman_curia/
congregations/cfaith/cti_documents/rc_con_cfaith_doc_20040723_communionstewardship_po.html>
Acesso em: 25 ago. 2013.
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Evangelium Vitae. Disponível em:
<http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031995_evangelium-vitae.pdf>.
Acesso em: 20 dez. 2016.
LADARIA, Luis. Introdução à
Antropologia Teológica. São Paulo: Loyola 2007.
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética I: Fundamentos e ética biomédica. São Paulo:
Loyola, 1996. v. 1.