28 de jul. de 2017

Questões de bioética: o corpo: entre idolatrias e desprezos!

Atualmente, o corpo está em evidência por diversos motivos. Na sociedade consumista, a sua beleza e perfeição são exaltados para se obter o máximo de lucros com os produtos de estética e beleza sempre mais sofisticados disponíveis no mercado. Os avanços tecnológicos na área da medicina permitem sonhar com sobrevida do corpo sempre mais longa e confortável. Crescem os dilemas em torno da finitude insuperável do corpo. Nas religiões, o corpo entra no debate do seu sentido e valor aqui e agora e também em vista da dimensão escatológica. Não se pode, porém, abordar assunto de tal abrangência com poucas palavras. Por isso, fazemos um recorte do pensamento da Igreja Católica a partir do Concílio Vaticano II, incluindo sua contribuição para o debate bioético. Fruto do diálogo com as ciências humanas, documentos como a Constituição Pastoral Gaudium et Spes abrem caminho para superar a dicotomia do ser humano, afirmada por séculos, e reconhecer seu ser como um todo em sua unidade e totalidade.  “Corpore et anima unus (uno de alma e corpo.” (Catecismo da Igreja Católica, 1999, n. 362). Ser humano, em sua totalidade imagem e semelhança de Deus, exaltada por Cristo. "O Filho de Deus, no mistério da Encarnação, confirmou a dignidade do corpo e da alma, constitutivos do ser humano. Cristo não desdenhou a corporeidade humana, mas revelou plenamente o seu significado e valor" (Congregação para a Doutrina da Fé, 2008, n. 7).
O corpo, que já foi considerado um mal necessário para a subsistência da alma, hoje, na perspectiva de visão integral do ser humano, é reconhecido como essencial para a identidade do ser humano. O ser humano, que é pessoa com dignidade em todos os momentos e circunstâncias, pelo corpo estabelece relações e significados.  É na corporeidade que constrói e revela sua identidade, aquela essência que o torna único e distinto dos demais. É no reconhecimento do corpo, com suas dimensões próprias, que se pode afirmar sua capacidade de transcendê-lo, a sua capacidade intrínseca de ter fé. “O homem é capaz de Deus” (CIC, 27-30)
Dissemos recuperação da visão original do ser humano, pois na raiz da fé cristã, em sua Palavra Sagrada, ele foi sempre imagem de Deus, em sua totalidade. “A antropologia bíblica exclui o dualismo mente-corpo. O ser humano é considerado aí na sua integridade. Entre os termos hebraicos fundamentais usados no AT para designar o ser humano, nefesh significa a vida de uma pessoa concreta que está viva (Gn 9,4; Lv 24,17-18; Pr 8,35). Mas o ser humano não tem um nefesh, ele é um nefesh. (Comissão Teológica Internacional, 2004, n. 28). Já o termo basar se refere à carne dos animais e dos humanos, e às vezes ao corpo no seu conjunto (Lv 4,11; 26,29). Também neste caso, o homem não tem um basar, mas é basar. O termo neotestamentário sarx (carne) pode denotar a corporeidade material do ser humano (2Cor 12,7), mas também a pessoa no seu conjunto (Rm 8,6). Outro termo grego, soma (corpo), refere-se ao ser humano inteiro, pondo a ênfase na sua manifestação exterior. Também aqui o homem não possui um corpo, mas é seu corpo. ” (Comunhão e Serviço n. 28).
Unicidade: o indivíduo tem relação com o código genético de seus progenitores e ao mesmo tempo seu patrimônio genético é novo e único. A expressão unitotalidade, marcante, da abordagem personalista, surge para definir um novo paradigma sobre a pessoa. A distinção das diferentes dimensões de uma mesma realidade não é sinônimo de separação e independência das partes. As reminiscências da dicotomia corpo e alma e do mecanicismo, que pressupõe o funcionamento do organismo segundo uma mecânica pré-definida inalterável, são superados nesta abordagem. “Por força da sua união substancial com uma alma espiritual, o corpo humano não pode ser considerado apenas como um conjunto de tecidos, órgãos e funções, nem pode ser avaliado com o mesmo critério do corpo dos animais. Ele é parte constitutiva da pessoa que através dele se manifesta e se exprime.” (Congregação para a Doutrina da Fé, 1987, n. 3). Portanto, a verdade sobre o ser humano, a verdade revelada, trata de um ser constituído de diversas dimensões relevantes para sua existência histórica e sua esperança escatológica. Em Deus, o Filho, o ser humano se conhece e reconhece. “A verdade revelada é verdade de salvação. É justamente essa verdade que nos diz quem é o homem, fazendo-nos conhecer ao que ele é chamado; precisamos pressupor uma coerência fundamental entre nosso ser e o nosso destino se não queremos que este último apareça como algo meramente exterior a nós mesmos.” (Ladaria, 2007, p. 12). O sentido pleno implica na dupla realidade: presente e futura. A esperança na Ressurreição em Cristo ilumina e significa a realidade presente. Por isso, nenhuma dimensão da experiência humana no tempo e na história pode ser vista como algo inútil e secundário. Sobretudo, porque ela é em vista da Ressurreição em Cristo.
Viver no corpo é viver em movimento em busca do sentido último da existência. Trata-se de um movimento não repetitivo, mas sempre novo, rumo à sua própria realização plena. “O corpo não apenas estabelece a relação com o mundo como também confere ao mundo significados sempre novos, transcendendo continuamente as próprias experiências e os significados precedentes.” (Sgreccia, 1996, p. 126). A experiência humana é uma experiência de limites, próprios do espaço e do tempo. O corpo, no mundo das ciências, pode ser descrito com suas propriedades físicas e leis próprias que regem o desenvolvimento biológico, mas não pode ser reduzido “um simples complexo de órgãos, funções e energias, que há de ser usado segundo critérios de mero prazer e eficiência”. (João Paulo II, 1995, n. 23). O corpo tem dignidade própria não podendo ser idolatrado e nem menosprezado. Ele não é a única dimensão da vida humana, porém, essencial para que as outras dimensões possam manifestar-se. “No homem, a personalidade subsiste na individualidade constituída por um corpo animado e estruturado por um espírito.” (Sgreccia, 1996, p. 79). Olhando para Jesus, vemos que o corpo ocupa um importante espaço para sua missão. Ele se volta à pessoa como um todo, portanto, também à sua dimensão corpórea. “A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas, indica quanto Deus tem a peito também a vida corporal da pessoa.” (João Paulo II, 1995, n. 47, grifo do original). Através de uma série de reflexões teológicas sobre o corpo, hoje reunidas sob o tema Teologia do Corpo, João Paulo II lança uma nova luz sobre o corpo. Apresenta os desafios do reducionismo tanto numa como em outra dimensão da vida humana devido ao significado identificado na sua totalidade. “O homem cessa, por assim dizer, de identificar-se subjetivamente com o próprio corpo, porque privado do significado e da dignidade derivantes de este corpo ser próprio da pessoa. Encontramo-nos aqui no limite de problemas, que muitas vezes exigem soluções fundamentais, impossíveis sem uma visão integral do homem”. (João Paulo II, 1981).  

Bibliografia

COMISSÃO Teológica Internacional. Comunhão e Serviço: A pessoa humana criada à imagem de Deus, 2004. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/ congregations/cfaith/cti_documents/rc_con_cfaith_doc_20040723_communionstewardship_po.html> Acesso em: 25 ago. 2013.

JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Evangelium Vitae. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031995_evangelium-vitae.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2016.

LADARIA, Luis. Introdução à Antropologia Teológica. São Paulo: Loyola 2007.


SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética I: Fundamentos e ética biomédica. São Paulo: Loyola, 1996. v. 1.

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