Geni Maria Hoss*
A caridade é o amor que edifica o irmão, o que implica
extrema sensibilidade para as necessidades do outro. Não há realidade humana
que não seja relevante para a missão da Igreja, todas as necessidades, sejam
elas de ordem espiritual, psicológica ou material, a interpelam pois o “mandato
de caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos
os ambientes da convivência e todos os povos.”[1]
Ademais, “o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja
e expressão irrenunciável da sua própria essência” (EG 179). Não há, portanto,
adesão a Cristo desvinculado da caridade. O anuncio traz inerente a mensagem da
caridade. A fé cristã não é professada de forma individualista, mas em comunhão
com os irmãos, por isso, “o
conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é
a caridade.” (EG 176). A opção preferencial
pelos pobres (cf. EG 198) é uma expressão da mensagem evangélica
imprescindível, tomando formas de concretização variadas de acordo com os
desafios de cada época e lugar. Mas na essência é a vivência da caridade que
está em causa. Dada a relevância desta
dimensão da fé, o Papa Francisco adverte para que não seja relegada a segundo
plano em forma de uma “caridade por receita”, o que significa “uma série
de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência”. (EG 180) Aqui
voltamos para o ensinamento de Paulo: “A caridade edifica!” (1 Cor 8, 1). Para
este fim, ela deve ser vivida de forma concreta tendo como critério o bem do
outro, o que implica envolvimento, engajamento profético e transformador das
realidades humanas.
O Papa Francisco revela ao longo de seus discursos, homilias e documentos
as diversas facetas da caridade, atualizando-as para que se possa dar uma
resposta efetivamente humanitária e edificante diante das atuais interpelações
a partir das necessidades pessoais, comunitárias locais e da comunidade global.
A caridade no exercício da
cidadania e no mundo político.
O Papa Francisco afirma que a caridade “é o princípio não só das microrrelações
estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macrorrelações
como relacionamentos sociais, económicos, políticos”[2].
Perceber-se como cristão cidadão participativo em prol do bem comum como
expressão da caridade não é uma realidade consolidada. Há muitos
questionamentos se a Igreja deve “intrometer-se na política”, confundindo-se a
politicagem irresponsável e interesseira sem foco no bem comum. No entanto, os
cristãos devem estar conscientes de que “a política, tão denegrida, é uma
sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o
bem comum.” (EG 205). Segundo a Doutrina Social ensina que a “adesão a uma
corrente política não será jamais ideológica, mas sempre crítica, a fim de que
o partido e o seu projeto político sejam estimulados a realizar formas sempre
mais atentas a obter o verdadeiro bem comum”[3].
O campo da política em todas as esferas deve ser um espaço de testemunho e
engajamento profético nas realidades humanas, porém, sempre como um crítico dos
sistemas, cujos interesses são adversos ao do bem comum. Exercendo o controle social, entre outros, os
cidadãos ajudam os seus representantes a cumprir sua missão, pois “os partidos
são chamados a interpretar as aspirações da sociedade civil orientando-as para
o bem comum.” (DSI 413.
A eleição dos representantes é relevante, mas não constitui o todo de
uma democracia. Os cristãos, como forma de viver a caridade, mesmo que não
afiliados de partidos ou lideres eleitos, são chamados ao engajamento profético
em diversos espaços de ação em favor do bem comum que cabem aos cidadãos numa
democracia, tais como: liderança comunitária nos conselhos locais de saúde,
segurança, participação de assembleias locais e nacionais da saúde, controle
social, denúncias de corrupção pelas ouvidorias, participação na elaboração da
lei de diretrizes orçamentárias da cidade, etc.
Outro desafio para os cristãos é a educação para que se formem líderes
políticos efetivamente focados no bem comum, tendo como centro de sua atuação o
ser humano em todas as suas dimensões. Diz
o Papa Francisco: “Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de
entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e
não a aparência dos males do nosso mundo.” (EG 205). A ação transformadora da sociedade requer um
comprometimento maior dos cristãos justamente nas esferas onde se definem e
decidem os destinos das pessoas
Apesar de se notar uma maior
participação de muitos nos ministérios laicais, este compromisso não se reflete
na penetração dos valores cristãos no mundo social, político e económico;
limita-se muitas vezes às tarefas no seio da Igreja, sem um empenhamento real
pela aplicação do Evangelho na transformação da sociedade. A formação dos
leigos e a evangelização das categorias profissionais e intelectuais constituem
um importante desafio pastoral. (EG 102)
A caridade nas relações de família.
Na recente exortação Amoris Laetitia, sobre o amor na família, o Papa
apresenta algumas características da caridade, aplicáveis às relações humanas
em todas as esferas. O amor na família é um amor altruísta. Os desejos e
aspirações do outro é o critério do cuidado e carinho. “Não tenha cada um em
vista os próprios interesses, mas todos e cada um exatamente os interesses dos
outros”. (Flp 2, 4).
O outro visto, assim sem interesse, é acolhido na sua dimensão de
beleza. Beleza em sua totalidade e não parcial definida e imposta pela
sociedade de consumo.
O amor de amizade chama-se «caridade», quando
capta e aprecia o «valor sublime» que tem o outro. A beleza – o «valor sublime» do outro, que não coincide com os seus atrativos
físicos ou psicológicos – permite-nos saborear o carácter sagrado da pessoa,
sem a imperiosa necessidade de a possuir. (EG 127).
O outro é sagrado, imagem e semelhança de Deus, portanto,
ela não se esgota nas aparências e condições limitadas da vida humana. Então
não será difícil renunciar “a
imperiosa necessidade de a (pessoa) possuir”. (EG 127). Fala-se de “amor
possessivo”, um amo impossível, pois amor que é amor é doação, “a caridade edifica!” (1 Cor 8, 1). O remédio
para o egoísmo doentio que muitas vezes assola as famílias, o Papa apresenta a
ternura. Ele explica: “Ternura é uma manifestação deste
amor que se liberta do desejo da posse egoísta. Leva-nos a vibrar à vista duma
pessoa, com imenso respeito e um certo receio de lhe causar dano ou tirar a sua
liberdade.” (EG 127)
Considerações: “A caridade edifica!” (1 Cor 8, 1). Se assim
entendermos o amor ao próximo nas relações ao próximo, mas também nos grandes
emaranhados políticos e econômicos, então não há dificuldade que impeça uma
forma mais eficiente de se engajar pelo irmão. O pouco impacto dos cristãos na
sociedade na condição de cidadãos ativos nas esferas sociopolíticas,
orientando-as sempre para o bem comum resulta da deficiente formação e
conscientização da verdadeira implicação prática do ser cristão.
*Doutora em Teologia com ênfase em Bioética e Meio Ambiente, Mestrado em Aconselhamento Pastoral. Assessora em temas de Fé e Meio Ambiente, Aconselhamento, Planejamento Pastoral.
*Doutora em Teologia com ênfase em Bioética e Meio Ambiente, Mestrado em Aconselhamento Pastoral. Assessora em temas de Fé e Meio Ambiente, Aconselhamento, Planejamento Pastoral.
Referências