“A pandemia do coronavírus nos
despertou bruscamente do perigo maior que sempre correram os indivíduos e a
humanidade, o do delírio de onipotência.”[1]
Assim disse o pregador da Casa Pontifícia, Cantalamessa. Sim, ele nos lembra o
que nos ensina o Catecismo da Igreja Católica: “Na doença, o homem experimenta
sua impotência, seus limites e sua finitude.”[2]
É esta experiência que estamos fazendo como humanidade, afetados diretamente ou
não pelo coronavírus. Agora chegou a hora de tirar forças desta impotência e
agir com a inteligência que o Criador nos deu para superar o momento que
estamos vivendo. Ou seja, devemos reconhecer as nossas próprias fragilidades e
confiar naquele que detém todo o poder, o Criador de todas as coisas. “Bastou o
menor e mais informe elemento da natureza, um vírus, para nos recordar que
somos mortais, que o poderio militar e a tecnologia não bastam para nos
salvar.”[3] À medida que tomamos mais consciência das
nossas limitações e também da nossa missão, a preocupação, natural diante do
desconhecido ameaçador, vai dando lugar ao cuidado. Sabemo-nos protegidos por
Deus e incumbidos para cumprir a nossa tarefa de cuidar de nós próprios, mas também
despertar para o cuidado do outro. Muitas vezes é justamente o cuidado de si
próprio que representa o cuidado do outro, pois vivemos de forma interdependente
nas diversas dimensões da vida. No caso de doenças contagiosas, como é o caso do
coronavírus, o cuidado do outro é essencialmente também cuidado de si próprio,
com todas as precauções conhecidas e reconhecidas pelo campo das ciências.
Mais do que o desespero, os cristãos
suplicam ao Espírito Santo para que ilumine todas as pessoas envolvidas na
busca de soluções seguras e efetivas. Estamos sujeitos a definições e determinações
de diversos setores das ciências da saúde, da política e da economia.
Uma vez não tendo ainda conhecimento
suficiente sobre o comportamento do coronavírus e igualmente carecendo de meios
de defesa e cura, é preciso tentar fazer o melhor possível daquilo que se tem
em mãos considerando experiências passadas e atuais orientações do âmbito da saúde.
Aperfeiçoamentos e mudanças no meio do caminho, desde que venham de fontes
seguras e não sejam pautadas em fake News e achismos, devem ser sempre
bem-vindos e aceitos como nova luz a iluminar nossas ações. É um grande desafio,
nas atuais turbulências sociais, encontrar um caminho que seja seguro e ao
mesmo tempo possa contar com a adesão popular necessária para minimizar o
avanço da doença. Não se pode ainda esperar soluções imediatas no âmbito
científico. Qualquer promessa diferente é mera enganação, uma vez que remédios
e vacinas resultam de um longo processo de pesquisa. É sempre arriscado usar
medicação com suposição de resultado em vez de resultado já confirmado pelas
pesquisas.
E o que temos no momento? Uma vez
declarada a pandemia, uma das primeiras orientações da Organização Mundial da
Saúde (OMS) foi o isolamento social. Sim, a estratégia é centenária e não promete
suspensão do coronavírus. Mas é compreensível para quem ainda se lembra das
antigas lições de matemática sobre a curva exponencial e tem diante de si a
realidade da capacidade do atendimento da saúde, seja ela pública ou suplementar.
Não se trata de definir matematicamente o seu avanço, mas de prever e tomar providências
antes de o sistema de saúde entrar em colapso. Desacelerar o avanço pode
permitir que se possa oferecer estrutura de assistência necessária aos cuidados
e também, no caso das situações mais graves que levam a óbito, que os
procedimentos posteriores sejam mais humanizados.
Pode ser discutível a forma
abrupta em que foi estabelecido em muitos lugares o isolamento social, uma
vez que este processo, em alguns casos, deixou os próprios cidadãos na mão ao
se fecharem fronteiras, mas isto não anula sua urgente necessidade. Não é o discurso
sobre a defesa da vida que nos interessa em primeiro lugar, mas a sua prática.
Porque usar o discurso para fundamentar atitudes que colocam tantas outras
vidas em risco não é compatível com a fé cristã. O Papa Francisco vem dando um
grande exemplo. Não é por acaso que aconteceram mudanças tão grandes nas
celebrações do Vaticano e, não só, ele também, através das instâncias próprias
do Vaticano, providenciou máscaras, respiradores para pessoas afetadas pelo
coronavírus. O isolamento social, segundo o Papa Francisco, é muito diferente
do abandono. Por isso, tanto ele o faz, como ensina fazer: promover a
proximidade solidária no distanciamento social. Neste sentido, somos
privilegiados por diversos meios tecnológicos que podem nos aproximar e ajudar
fraternalmente. Além disso, a oração com suas intenções diárias que o Papa
Francisco faz devem estender-se aos nossos lares. Formamos uma grande aliança
global de oração para que profissionais, pacientes e familiares encontrem
forças para superar este sofrimento e que o Espírito Santo ilumine cada pessoa para
ela encontrar o caminho certo do cuidado de si próprio e do irmão.
Algumas pedras no caminho, no
entanto, estão dificultando o cuidado e a assistência tornando os desafios
ainda maiores. Precisamos, com urgência, do discernimento que cura a
nossa incapacidade de crítica diante daqueles a quem confiamos a gestão pública. “O
cristão não pode encontrar um partido plenamente às exigências éticas que
nascem da fé e da pertença à Igreja: a sua adesão a uma corrente política não
será jamais ideológica, mas sempre crítica, a fim de que o partido e o seu
projeto político sejam estimulados a realizar formas sempre mais atentas a obter
o verdadeiro bem comum.”[4]
Enquanto cristãos somos chamados a exigir ações de proteção à vida. Não se pode
continuar a se orientar por fake News fabricadas em escritórios, com linguagem
agressiva, de ódio e depreciação da dignidade alheia, sem assinatura e sem
fonte segura, ora para agradar um extremo polarizado, ora outro. Isto gera, em
vez da união necessária, acirramento da polarização pautada na mentira, o que
conflita profundamente com o Evangelho, além de orientar as forças pessoais ou grupais
para objetivos adversos ao cuidado recíproco quando mais se precisa de ajuda e
fraternidade. Aqui é preciso lembrar que nada nos dá o direito de depreciar o
outro pelo fato de pensar diferente, atitude que se tem mostrado com frequência
nas redes sociais. Discordar é normal, mas com vocabulário respeitoso e evitar
usar fake News para afirmar a própria opinião. O linguajar pejorativo para com
o outro que, por sinal, gira rápido nas redes sociais, não é pressuposto para o
diálogo e união no esforço para combater um inimigo comum: no caso, o
coronavírus. Aquele texto tão agradável e sintonizado com meus desejos pode conter
informações não verdadeiras, então é bom desistir de compartilhá-lo. Se alguém
acredita naquilo que se compartilha, por exemplo, sobre remédios milagrosos, chás,
desmerecimento das orientações da OMS, isto pode ter consequências trágicas. As
fake News são sempre para alienar agradando. Sem olhar crítico, sem abordar a
informação de vários lados, de forma objetiva, não devemos dar atenção, mais,
devemos alertar outros sobre o risco de informações desta natureza.
Alguns cientistas, nas primeiras
semanas, trouxeram à tona a verdade sobre o coronavírus e imediatamente, como
um vírus destruidor, algumas redes sociais atacaram os cientistas e os acusaram
de espalhar pânico. Isto é grave, porque mostra que a verdade já não é mais bem-vinda.
Ninguém entra em pânico por saber a verdade, a verdade pode ser cruel, mas traz
segurança e permite que se siga um caminho mais seguro. “A verdade vos libertará!”
(Jo 8, 32). Ela agrada? Nem sempre, ainda mais quando se trata de uma situação
de emergência mundial como vivemos no momento.
Como cristãos somos chamados a espalhar
a esperança onde há desespero, a iluminar o mundo das comunicações virtuais com
a luz da verdade, a sermos capazes de reivindicar das autoridades constituídas
para cuidarem do bem comum da sociedade que tomem decisões e hajam em prol da
vida de todos naquele sentido de discernimento requerido pela DSI. O cristão
não é chamado a defender cegamente, usando para isso uma infinidade de fake
News, as pessoas públicas que escolheu, mas de ser crítico de suas ações e decisões
de forma que não se perca de vista a dignidade das pessoas, como acima indicado
sobre a DSI.
Vem, Espírito Santo...
(Geni Maria Hoss, Teóloga e Bioeticista)
[1] Fr.
Raniero Cantalamessa OFM. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2020-04/cantalamessa-sexta-feira-paixao-coronavirus-delirio-onipotencia.html.
Acesso em: 15 abr. 2020.
[2]
Catecismo da Igreja Católica (CIC), 1992, n. 1500.
[4] Compêndio
da Doutrina Social da Igreja (DSI). Vaticano: Librerie Editrice Vaticana, 2004,
n. 573.